Os passeios artísticos
Obra atualiza os estudos da "deriva", proposta de caráter artístico e político, iniciada na Itália, dos anos 1960
A arte não pode ficar trancafiada entre quatro paredes. Precisa ganhar o mundo e interagir, principalmente, com o espaço urbano e a vida, daí buscar novos desvios ou brechas, como prenunciou o teórico francês Guy Debord, conhecido pelos estudos em torno da sociedade do espetáculo, no texto-manifesto "Teoria da deriva", escrito em 1958. O tema agora é retomado em estudo que se notabiliza pela precisão, clareza e pesquisa, materializado no livro "Novas derivas", do crítico de arte italiano Jacopo Crivelli Visconti.
Na obra, o autor revisita a deriva, um dos procedimentos da Internacional Situacionista (IS), movimento artístico e político criado no fim dos anos 1960, na Itália, com repercussão em várias partes do mundo. A ação, normatizada pelo teórico da sociedade do espetáculo, consistia simplesmente em perambular a pé, explorando o comportamento "lúdico-construtivo", opondo-se às noções de viagem ou passeio. A partir dessas andanças, os adeptos da prática descobriram uma nova maneira de fazer arte, incorporada mundo afora, sendo um dos principais preceitos a produção de uma arte não comercializável.
O autor analisa o contexto das derivas desde os anos 1960, passando pela década de 1990, até chegar ao século XXI. "Como boa parte da produção contemporânea mais instigante, as novas derivas funcionam dentro de um universo que pode ser definindo citando o teórico francês Nicolas Bourriaud", defende a estética relacional, que consiste em uma função social da arte. Assim, pode gerar novas relações, "mesmo no âmbito peculiar do museu ou da galeria, essas obras contribuem para o nascimento e o fortalecimento de uma nova sociedade, criando instrumentos para novas possibilidades de convivência". Hoje, cada vez mais o conceito tem sido revisitado, como demonstra o autor do livro.
Nessa perspectiva, "derivar" pode ser entendido como uma releitura de flanar, como fazia na Paris do início do século XX, o pai da modernidade, Charles Baudelaire (1821-1867). Embora, Debord considerasse o "flâneur" alienado. A deriva está intimamente relacionada ao espaço urbano, por isso, não por acaso, seus adeptos praticam ações que surpreendem. A realização de caminhadas é uma delas, assim como a criação de cartografias marcadas pelos afetos, citando a criação de mapas de cidades, frutos da imaginação de um artista-andarilho. Até mesmo seguir pessoas são ações que, à primeira vista, podem parecer mais interferências na cidade do que propriamente manifestações artísticas, no sentido ortodoxo do termo.
Transformação
No entanto, não deixam de ser novas maneiras de experimentar a arte, sobretudo levando em consideração a relação com a vida ordinária. Mas "derivar" também tem o apelo político de agir com a sua realidade. Nesse aspecto está a principal crítica de Debord à sociedade do espetáculo, considerada apática, diferente da proposta pela deriva, fruto da Internacional Situacionista, que defendia ações revolucionárias ou de transformação. As ações, como por exemplo, as caminhadas podem ser em grupo ou solitárias, abrindo espaços aos coletivos, manifestações que, cada vez, mais ganham espaço dentro do contexto contemporâneo da arte.
Nesse sentido, os criadores não se limitam a criar obras primas, dotadas de uma aura, sendo traduzida depois em valor econômico, contando com a ajuda de curadores ou galeristas. Assim, "Novas derivas" surge como um convite aos artistas que agora trabalham em rede, para que criem novas estéticas e maneiras de interagir com o mundo. A vida ou a cidade são usadas como suportes, assim como fizeram alguns artistas retratados no livro.
A referência a Debord é bastante oportuna, pela atuação do teórico em várias áreas do conhecimento, sem deixar de lado a sua participação política. "Formada prevalentemente por escritores, artistas e arquitetos ao longo de sua atribulada existência, e apesar de uma progressiva radicalização de sua posições políticas, a Internacional Situacionista deve ser considerada um movimento eminentemente artístico, sobretudo em seus primeiros anos, e é de fato uma leitura a partir do âmbito artístico de textos como a Teoria da deriva que melhor demonstra quanto, para além talvez das intenções do próprio Debord, suas ideias reverberariam na produção artística a partir da década seguinte até hoje", analisa. Enquanto no fim da década de 1960, os franceses viviam o que Jacopo Crivelli Visconti chama de "as últimas veleidades artísticas da Internacional Situacionista", sendo substituídas pelo engajamento político bem explícito, o verbo derivar como ação artística ganha o mundo.
Passando a ser conjugado em diversas línguas e tempos, daí ganhar fôlego novo na contemporaneidade. "Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem de de passeio", é assim que Debord inicia o texto-manifesto do movimento, vem no bojo das neovanguardas artísticas.
O teórico francês foi um dos mais importantes integrantes do grupo. No manifesto, ao mesmo tempo em que lançava a ideia, normatizava a pratica da deriva, que segundo o autor consiste em "perambular, sobretudo a pé, mas eventualmente também de outras formas, sem rumo, predefinido, escolhendo ao acaso, ou com base em sensações e impressões extemporâneas, a direção a ser tomada a cada momento".
Para o filósofo Guy Debord, um dos objetivos das derivas "é estabelecer uma cartografia influencial que falta até o momento, e cuja incerteza atual, inevitável até que se efetue um imenso trabalho, não é pior que a dos primeiros portulanos, e com uma diferença: não se trata de delimitar exatamente continentes duráveis, mas de mudar a arquitetura e o urbanismo".
Sem fronteiras
O autor concentra-se em obras baseadas no ato de andar, para mostrar como o chamado foi aceito de imediato por artistas de diferentes lugares do mundo, alguns não figuravam nos compêndios de arte tradicionais. Ou seja, "essa prática difundiu-se até em países aparentemente excluídos ou à margem do sistema da arte, seja pela distância geográfica, seja intransigência dos regimes políticos". Exemplos de manifestações eram verificadas em Nova York e Praga, expandindo-se para a América do Sul, como no Chile, Argentina e Brasil.
Vale lembrar o contexto político vivenciado pelos países do cone Sul, que viviam sob ditaduras, na época, instigando a realização de obras-manifestos. O autor retrata a ação da artista chilena Lotty Rosenfeld, que denunciava, mediante protesto silencioso e poético, as agruras do regime de Pinochet, ao pintar várias cruzes sobre a estrada, em 1979. A obra-protesto fazia referência aos mortos políticos do Chile. O inglês Richard Long criou "Uma linha feita ao caminhar", em contexto menos conflituoso, destaca.
No Brasil, cita as obras dos artistas Cildo Meireles e Artur Barrio, ambos, em 1970, realizaram trabalhos denunciando a situação política. Uma das ações célebres de Barrio chama-se "4 dias 4 noites, que consiste numa deriva solitária por bairros do Rio de Janeiro. No mesmo ano, Meireles começou uma série de obras intituladas inserções em circuitos ideológicos, na quais se apropriava de objetos de uso generalizado e carregados de valores simbólicos. É desse período a série com cédulas carimbadas com a pergunta "Quem matou Herzog?". São obras consideradas clandestinas, fazendo jus à ideologia da deriva. Os reflexos são sentidos na Land art americana, da década de 1960. Hoje, os reflexos podem ser observados nos coletivos de artistas, que realizam intervenções urbanas, ou ainda, na estética relacional de Bourriaud, da mesma terra de Debord.
Livro
Novas derivas
Jacopo Crivelli Visconti
WMF MARTINS FONTES
2014, 200 páginas
R$ 39,90
Jacopo Crivelli Visconti
WMF MARTINS FONTES
2014, 200 páginas
R$ 39,90
Iracema Sales
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